O assassinato a tiros de mais de 100 manifestantes contrários ao golpe militar em Mianmar gerou indignação internacional, e ministros da Defesa de 12 países fizeram duras críticas aos militares no comando do país.
Os EUA acusaram as forças de segurança de um “reinado de terror” no sábado (27/3), o dia mais mortal desde o golpe em fevereiro de 2021.
O líder do golpe, Min Aung Hlaing, e seus generais ainda deram uma festa na noite do sábado em celebração ao Dia das Forças Armadas.
Neste domingo (28/3), foram realizados os funerais dos manifestantes mortos, mas militares tentaram suspender algumas cerimônias.
Mais de 400 pessoas já foram mortas na repressão aos protestos em Mianmar (conhecida também como Birmânia) desde o golpe. Os militares tomaram o controle do país do Sudeste Asiático após uma eleição que o partido Liga Nacional para a Democracia (NLD), liderado por Aung San Suu Kyi, venceu por uma vitória esmagadora.
Qual foi a reação internacional?
Os ministros de Defesa de uma dúzia de países, incluindo Estados Unidos, Austrália, Japão e Reino Unido, divulgaram um raro comunicado conjunto neste domingo condenando as ações violentas dos militares.
“Um militar profissional segue os padrões internacionais de conduta e é responsável por proteger – e não prejudicar – as pessoas a quem serve.”
Os EUA disseram estar “horrorizados” com as mortes. O secretário de Estado, Antony Blinken, acusou os militares de Mianmar de “sacrificar a vida do povo para servir a poucos”.
O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Antonio Guterres, disse estar “profundamente chocado” com a violência, e o secretário de Relações Exteriores britânico, Dominic Raab, chamou a situação de “novo fundo do poço”. E Tom Andrews, relator especial da ONU, convocou uma cúpula internacional de emergência.
China e Rússia não aderiram às críticas internacionais, o que torna mais difícil aplicar medidas por meio do Conselho de Segurança da ONU, no qual os dois países têm poder de veto.
Especialistas disseram à BBC que há uma grande movimentação para aumentar as sanções — no momento certo. “O mundo ainda está esperando para ver como isso vai se desenrolar”, disse George McLeod, diretor-gerente da Access Asia, uma empresa de gerenciamento de risco especializada na região. “Pelo que ouvi de pessoas de lá, a Noruega está tentando chegar a uma solução negociada.”
Qual é a situação atual das ruas de Mianmar?
No domingo, famílias realizaram funerais para alguns dos mortos no dia anterior. Um deles era para Kyaw Win Maung, que foi morto a tiros em Mandalay.
Outra cerimônia na cidade foi realizada em homenagem a Aye Ko, pai de quatro filhos. “Os vizinhos nos disseram que Aye Ko foi baleado e jogado no fogo”, disse um parente à agência de notícias AFP. “Ele era o único que sustentava a família, e perdê-lo é uma grande perda para a família.”
Em razão da natureza repressiva do governo, é difícil confirmar com precisão o que se passa no país, mas alguns veículos de comunicação locais disseram que as forças de segurança tentaram impedir funerais. O jornal The Irrawaddy disse que a polícia tentou prender pessoas em uma missa para um membro do sindicato de estudantes morto na cidade de Phaya-Gyi.
Apesar da violenta repressão no sábado, houve protestos neste domingo em cidades como Katha e Hsipaw.
Como os militares se posicionaram em relação às mortes?
Os militares não comentaram o assassinato de ao menos 91 manifestantes.
No sábado, eles realizaram um desfile para o Dia das Forças Armadas e acompanharam o discurso do líder golpista, Min Aung Hlaing, que disse querer “proteger a democracia”, mas fez alertas contra “atos violentos”.
Estiveram presentes no evento representantes da Rússia, China, Índia, Paquistão, Bangladesh, Vietnã, Laos e Tailândia.
Na noite de sábado, uma festa militar de luxo foi realizada na capital, Nay Pyi Taw, gerando fúria nas redes sociais, incluindo o ativista birmanês Maung Zarni:
Diversas postagens no Twitter colocaram lado a lado fotos da festa e imagens das vítimas mortas pelas forças de segurança.
O que aconteceu no sábado?
Ativistas contrários ao golpe militar pregaram protestos pacíficos, mas eles logo se tornaram violentos quando as forças de segurança abriram fogo em mais de 40 localidades do país.
O centro comercial de Yangon, maior cidade de Mianmar, registrou dezenas de mortes.
O grupo de monitoramento da Associação de Assistência para Presos Políticos (AAPP) confirmou pelo menos 91 mortes. O site de notícias local Myanmar Now estima o número de mortos em 114, enquanto as Nações Unidas afirmam estar recebendo relatórios de “dezenas de mortos” e centenas de feridos.
O diretor da Rede de Direitos Humanos da Birmânia no Reino Unido disse à BBC que os militares mostraram que “não há limites, nem princípios”.
“É um massacre, não é mais uma repressão”, disse Kyaw Win.
“Eles estão nos matando como passarinhos ou galinhas, até mesmo em nossas casas”, disse Thu Ya Zaw à Reuters. Ele mora na cidade central de Myingyan, onde pelo menos dois manifestantes foram mortos. “Continuaremos protestando apesar de tudo… Devemos lutar até a queda da junta militar.”
O governo também tem cortado o acesso à internet, censurado veículos de comunicação e bloqueado redes sociais para tentar conter os protestos contra o golpe, que tem ganhado força entre estudantes, funcionários públicos, sindicatos e categorias profissionais organizadas.
“Ouvi histórias de pessoas que foram presas e pareciam ter sido torturadas, outras que receberam os corpos de seus parentes com órgãos faltando. Familiares meus estão na cadeia, pessoas que eu conheço foram mortas. Eu não quero virar mártir, eu quero poder usufruir da democracia em Mianmar quando enfim conseguirmos restabelecê-la”, relatou Aye Min Thant, jornalista que recebeu o Prêmio Pulitzer em 2019, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo.
Em meio ao avanço da violência, um dos 20 grupos étnicos armados de Mianmar, a União Nacional Karen, afirmou ter invadido um posto do Exército perto da fronteira com a Tailândia, matando 10 pessoas.
As facções armadas étnicas de Mianmar dizem que não ficarão paradas em meio ao golpe e que não permitirão mais mortes de manifestantes, disse neste sábado o líder de um dos principais grupos armados.
Crianças entre os mortos e feridos
Análise de Moe Myint, da BBC Burmese
A mãe da adolescente de 14 anos, Pan Ei Phyu, afirmou ter corrido para fechar as portas quando ela ouviu a chegada dos militares. Mas ela não foi rápida o bastante. Pouco depois, ela estaria segurando o corpo ensanguentado de sua filha.
“Eu a vi desabar e achei que ela tivesse escorregado e caído. Mas de repente o sangue começou a sair de seu peito”, afirmou ela à BBC Burmese, a partir da cidade de Meiktila, no centro do país.
A aleatoriedade das mortes foi particularmente chocante no massacre de sábado. Munidas de armamento pesado, as forças de segurança pareciam atirar em qualquer um que estivesse nas ruas. A brutalidade mostrou que eles são capazes de um nível de violência que não havia sido visto desde o golpe.
Nenhum dos lados, os militares e o movimento pró-democracia, parece disposto a recuar. Os militares pensam que podem aterrorizar as pessoas a fim de garantir “estabilidade e segurança”. Mas o movimento das ruas, liderado por jovens, está determinado a tomar o poder dos militares de uma vez por todas.
É doloroso ter que contar os mortos, ainda mais com crianças entre eles.
O que antecedeu o golpe em Mianmar?
O golpe militar em fevereiro deste ano espalhou medo por todo o país, que suportou quase 50 anos de governos militares opressores antes da mudança para um governo democrático em 2011.
As prisões de Aung San Suu Kyi, vencedora do Prêmio Nobel da Paz, e de outros políticos trouxeram de volta dias que muitos esperavam ter deixado para trás.
Nos últimos cinco anos, ela e seu partido lideraram o país depois de ser eleito em 2015 na votação mais livre e justa em 25 anos. No primeiro dia de fevereiro, o partido deveria iniciar seu segundo mandato, consagrando o resultado das eleições de novembro de 2020, mas não foi isso que ocorreu.
Nas eleições, o NLD conquistou mais de 80% dos votos, permanecendo imensamente popular mesmo diante das acusações de genocídio contra os muçulmanos rohingya do país.
A oposição, apoiada pelos militares, imediatamente começou a fazer acusações de fraude após a votação. A alegação sem provas foi repetida em um comunicado assinado e divulgado como justificativa para imposição de um estado de emergência por um ano.
Uma grande lacuna para explicar o golpe de Estado é que os militares não perderam poder na eleição, já que eles ainda têm grande influência sobre o governo, graças à controversa Constituição de 2008, que garante um quarto de todas as cadeiras no Parlamento e o controle dos ministérios mais poderosos do país (Interior, Defesa e Fronteiras).
Para Aye Min Thant, existe a hipótese de que pode haver outro motivo para o golpe: constrangimento por parte dos militares. “Eles não esperavam perder (a eleição)”, disse ela à BBC.
“Você precisa entender como o Exército vê sua posição no país”, acrescenta Aye Min Thant. “A mídia internacional costuma se referir a Aung San Suu Kyi como ‘mãe’ do país. O Exército se considera o ‘pai’ da nação.” Como resultado, sente que tem “obrigação e direito” de governar — e nos últimos anos, à medida que o país se tornou mais aberto ao comércio internacional, não gostou do que viu. “Eles veem os estrangeiros especialmente como um perigo.”
Não está claro também o que os militares têm a ganhar com o golpe.
“Tomar o poder por um ano, conforme anunciado, isolará parceiros internacionais não chineses, prejudicará os interesses comerciais dos militares e provocará uma escalada de resistência de milhões de pessoas que deram a Suu Kyi e o NLD no poder outro mandato para governar”, disse Gerard McCarthy, que faz pós-doutorado no Instituto de Pesquisa da Ásia da Universidade Nacional de Cingapura, à BBC.
Suu Kyi e os militares
Suu Kyi é filha do herói da independência de Mianmar, o general Aung San, assassinado quando ela tinha apenas dois anos de idade.
Após períodos vivendo na Índia, Japão, Butão e Inglaterra, ela voltou ao país natal em 1988, ano turbulento na história de Mianmar.
Milhares de estudantes, trabalhadores e monges saíam às ruas para pedir reformas democráticas. E Suu Kyi foi rapidamente alçada à categoria de líder de uma revolta contra o então ditador general Ne Win.
Inspirada pelas campanhas dos líderes de defesa dos direitos civis Martin Luther King, nos EUA, e Mahatma Gandhi, na Índia, ela organizou comícios e viajou pelo país, pedindo reforma democrática pacífica e eleições livres.
Mas as manifestações foram brutalmente reprimidas pelo Exército, que tomou o poder em um golpe no dia 18 de setembro de 1988.
O governo militar convocou eleições nacionais em 1990, e o partido de Suu Kyi venceu o pleito, apesar de ela estar sob prisão domiciliar e de ter sido impedida de participar da votação.
Mas a junta se recusou a entregar o poder, e permanece no controle do país desde então.
Suu Kyi ficou presa entre 1989 e 1995. Durante o período em que esteve presa, participou de reuniões secretas com o governo militar e abriu caminho para o diálogo entre as autoridades e a oposição.
Em 2015, com a vitória de seu partido nas eleições gerais, ela se tornou a figura mais poderosa do governo, o que teria ampliado divergências com os militares de forma crescente desde então e encontra ecos no golpe de 2021. Isso porque Suu Kyi é proibida pela Constituição a impede de se tornar presidente por ter filhos estrangeiros, mas a partir de 2015 passou a ocupar os cargos de 1ª Conselheira de Estado e chanceler do governo, se tornando a líder de facto do país, ainda que não exercesse controle sobre o comando militar.
Nos últimos anos, sua liderança foi abalada no cenário internacional pelo tratamento à minoria muçulmana Rohingya.
Em 2017, milhares de Rohingya fugiram para Bangladesh, país vizinho, devido à repressão do Exército provocada por ataques mortais a delegacias de polícia no Estado de Rakhine.
Os ex-apoiadores internacionais de Suu Kyi a acusaram de não fazer nada para impedir o estupro, assassinato e possível genocídio ao se recusar a condenar os militares ou reconhecer os relatos de atrocidades. Perante o Tribunal Internacional de Justiça, instância da Organização das Nações Unidas (ONU), ela negou publicamente as acusações de limpeza étnica contra a minoria muçulmana rohingya.
Para alguns analistas, a ofensiva nacionalista de Suu Kyi em defesa do país ante as críticas internacionais ampliaram sua popularidade para na eleição geral em novembro de 2020.
Dentro do país, no entanto, “a Lady”, como Suu Kyi é conhecida, continua bastante popular entre a maioria budista que tem pouca simpatia pelos Rohingya.
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Fonte: BBC