O que foi e como terminou a Primavera Árabe?

Bandeiras da Líbia, Egito e Tunísia no Cairo

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Bandeiras árabes na praça Tahrir, no Cairo, após a renúncia de Hosni Mubarak em 2011

Tudo começou com um vendedor de frutas no interior da Tunísia. Mohamed Bouazizi, de 26 anos, era um ambulante na pequena cidade de Sidi Bouzid, onde era constantemente intimidado por policiais — falta de licença, problemas com seus produtos, pedidos de propina.

No dia 17 de dezembro de 2010, em novo episódio de intimidação, policiais confiscaram seu carrinho de frutas por ele não ter licença para vender no local onde supostamente era necessária.

Bouazizi foi à sede do governo local reclamar e tentar recuperar seus pertences, mas não foi recebido. Sem conseguir mais trabalhar e afetado há anos pelo desemprego, a situação o levou ao desespero. Bouazizi adquiriu um galão de combustível, jogou o líquido sobre o corpo e, diante do prédio do governo, ateou fogo a si mesmo.

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Mohamed Bouazizi tornou-se um símbolo da luta por direitos civis no Mundo Árabe

Com a ajuda da internet e das mídias sociais, a notícia de seu gesto espalhou-se como o fogo em seu corpo — e rapidamente transformou-se em protestos contra o desemprego e a corrupção na Tunísia.

O país árabe, no norte da África, era governado pelo presidente Zine al-Abidine Ben Ali havia 23 anos, tendo sido reeleito pela última vez em 2009.

Apesar de não permitidos pelo governo, os protestos de rua multiplicaram-se, incluindo choques com a polícia, pressionando Ben Ali e chamando a atenção da comunidade internacional.

O presidente chegou a visitar Mohamed Bouazizi no hospital, mas o vendedor de frutas morreu em 4 de janeiro. Enquanto a tensão no país aumentava, Ben Ali tentava manter a ordem, dizendo que os protestos eram “inaceitáveis” e organizados por “uma minoria de extremistas”.

A velocidade dos acontecimentos surpreendeu a todos. Em meados de janeiro de 2011, o governo negava a informação de que pelo menos 50 pessoas haviam sido mortas, dizendo que haviam sido 21.

No dia 13, Ben Ali disse que não mais disputaria a reeleição no pleito previsto para 2014, promessa que não diminuiu a ira dos cidadãos nas ruas.

Vinte e quatro horas depois — e menos de um mês desde a imolação pública do ambulante Mohamed Bouazizi , o antes todo-poderoso presidente da Tunísia abandonou o país em direção à Arábia Saudita, para nunca mais voltar. Ele morreu no exílio em 2019.

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Ben Ali renunciou pouco depois do início dos protestos na Tunísia

Ben Ali deixou como herança não apenas um país em crise, com um governo interino e sob estado de emergência, mas também a ideia de que era possível derrubar um ditador árabe com protestos pacíficos.

Estava lançada, na entrada do inverno, a série de protestos e revoluções contra regimes autoritários no Oriente Médio, conhecida como Primavera Árabe.

Queda de Mubarak

A maior parte das nações árabes, inclusive as que desfrutavam da riqueza fácil do petróleo, sofria dos mesmo males que levaram à queda de Ben Ali.

A crise financeira global de 2008 agravara a situação econômica na região, e as taxas de desemprego eram altas, especialmente entre a população jovem.

Como a Tunísia, outros países também eram governados por autocratas, que historicamente reprimiam dissidências e protestos com extrema violência.

Empobrecidos e com pouca esperança no futuro, cidadãos da região viram na crise tunisiana um exemplo a ser seguido.

O novo Iraque, mesmo após uma ocupação devastadora, também sugeria ser possível adotar um regime mais democrático, baseado em consultas populares.

O país aonde essas mensagens chegaram mais rapidamente foi o Egito, a maior nação árabe, com cerca de 90 milhões de habitantes.

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Praça Tahrir, no centro do Cairo, tomada por manifestantes em 2011

O Egito era então governado pelo presidente Hosni Mubarak, no cargo desde outubro de 1981. O antecessor de Mubarak e ganhador do prêmio Nobel da Paz, Anwar El Sadat, de quem ele era vice, foi assassinado a tiros num impressionante ataque de militantes islâmicos durante um desfile militar no Cairo — outras dez pessoas foram mortas, e o próprio Mubarak foi ferido.

Os responsáveis pelo ataque eram oficias das Forças Armadas egípcias descontentes com o fato de Sadat ter sido o primeiro líder árabe a firmar (em 1971) um acordo de paz com Israel.

Diante do perigo do avanço da militância radical islamista, governos autoritários simpáticos ao Ocidente eram tolerados como um mal menor no começo deste século.

A Primavera Árabe, no entanto, parecia mudar essa realidade. Em janeiro de 2011, enquanto Ben Ali renunciava ao poder na Tunísia, ativistas por democracia no Egito começaram a convocar protestos por reformas no país – como na Tunísia, aproveitando o potencial da comunicação via internet e redes sociais.

Ruas e praças, especialmente na capital, Cairo, foram rapidamente tomadas pela população pedindo melhoras econômicas e reformas políticas. A praça Tahrir (em português, “Libertação”), no Cairo, tornou-se o centro do movimento por democracia.

Centenas de pessoas foram mortas em confrontos envolvendo manifestantes, forças de segurança e simpatizantes do regime. Cercada por tanques do Exército, a praça Tahrir tornou-se uma pequena cidade-protesto, com acampamento, comércio, coleta de lixo e um mural homenageando os mortos.

Apesar da violência mais acentuada, o roteiro final acabou sendo quase uma cópia daquele vivido pela Tunísia: o governo Mubarak inicialmente reagiu com violência, mas menos de um mês depois, perdeu o controle da situação.

Em 12 de fevereiro, após 29 anos com plenos poderes sobre o Egito, Hosni Mubarak renunciou ao cargo.

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Hosni Mubarak ficou no poder no Egito durante 29 anos, desde a morte de Anwar Sadat

As condições econômicas propícias para um levante popular no Egito já eram conhecidas da comunidade internacional, particularmente o FMI (Fundo Monetário Internacional) – que desde os anos 1990 impunha reformas liberalizantes ao país.

Em 1º de fevereiro, o The Wall Street Journal citava o então diretor-gerente do FMI, Dominique Strauss-Khan, que dissera que os altos níveis de desemprego entre jovens no Egito eram “uma bomba-relógio”.

“Claramente, essa situação poderia ter sido esperada não apenas no Egito, quando você vê o problema criado pelo alto nível de desemprego.”

A reportagem lembrava que os níveis de desemprego entre jovens era na época de 25% no Egito, 30% na Tunísia e 21% no Líbano – e que programas de criação de empregos eram necessários também em países como Jordânia, Marrocos e Síria.

Monarquias sob pressão

Alguns autocratas do Mundo Árabe perceberam que a repressão violenta a protestos poderia fazer com que tivessem o mesmo destino de Ben Ali e Mubarak.

No dia 20 de fevereiro de 2011, a entidade de defesa de direitos humanos Human Rights Watch noticiou que uma jornada de protestos em várias cidades do Marrocos havia ocorrido de forma pacífica.

Segundo a organização, as forças de segurança marroquinas haviam “às vezes” utilizado de violência contra manifestantes em dias anteriores, mas aparentemente o regime do rei Mohammed VI mudara de estratégia.

“Hoje as forças de segurança permitiram que os cidadãos do Marrocos marchassem pacificamente para exigir mudanças profundas na forma como seu país é governado”, disse a Human Rights Watch.

Cerca de duas semanas depois, em 9 de março, o rei Mohammed VI anunciou em comunicado na televisão um plano de reforma constitucional. A proposta, afirmou o monarca, daria mais poderes ao primeiro-ministro e ao Parlamento, mais autonomia a regiões do país, garantiria igualdade de direitos às mulheres e resultaria em mais liberdade de expressão aos cidadãos.

Apesar de criticada por integrantes do movimento que liderou os protestos de fevereiro, a reforma marroquina foi aprovada quatro meses depois, em julho, em um plebiscito nacional. Segundo números do governo, a participação foi de 73% dos eleitores, com as mudanças aprovadas por 98,5%.

Com a nova Constituição, o rei passaria a escolher o primeiro-ministro entre os representantes do partido com a maior bancada no Parlamento. As eleições parlamentares foram antecipadas para o fim de 2011, e um novo Executivo, liderado pelo premiê Abdelilah Benkirane, assumiu em novembro daquele ano.

Na Primavera Árabe, havia diferenças no comportamento de manifestantes e na reação das autoridades de acordo com o grau de liberdades democráticas de cada país.

Além disso, em monarquias cujos reis desfrutavam de significativa credibilidade, a insatisfação das ruas era mais direcionada contra os políticos que chefiavam o Executivo. Foi o que aconteceu, além do Marrocos, na Jordânia.

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O rei Abdullah ofereceu concessões e sobreviveu à Primavera Árabe

Inspirados pelos tunisianos, já em janeiro de 2011, os jordanianos foram às ruas em protesto contra o desemprego, a pobreza e a corrupção. Pediram a renúncia do primeiro-ministro Samir al-Rifai, que ocorreu poucos dias depois.

Em 1º de fevereiro, o rei Abdullah colocou no cargo Marouf Bakhit e pediu que ele iniciasse imediatamente um processo de reforma política.

Bakhit não foi capaz de estabilizar a situação, e um mês depois manifestantes já pediam sua renúncia. Em novembro, o rei Abdullah decidiu substituí-lo por Awn Khasawneh, que também não duraria muito tempo no cargo – apenas seis meses.

Apesar das constantes crises políticas, acompanhadas de protestos relativamente pacíficos, o regime monárquico da Jordânia evitou uma revolta maior. O rei Abdullah ofereceu concessões, implantou algumas reformas internas e sobreviveu à fase mais difícil da Primavera Árabe.

Kuwait e Arábia Saudita

Outros regimes monárquicos, como na Arábia Saudita e no Kuwait, enfrentaram protestos de rua de menores consequências.

No Kuwait, manifestações começaram em fevereiro e reuniram principalmente árabes que viviam ou mesmo nasceram no país, mas não eram considerados cidadãos kuwaitianos.

Em seguida, outros passaram a exigir melhoras no país, especialmente no combate à corrupção. Em novembro de 2011, manifestantes invadiram o Parlamento do Kuwait – ação que levou à condenação à prisão de várias pessoas, sete anos mais tarde, incluindo três parlamentares.

Já o regime saudita, diante de manifestações por reformas políticas, concentrou-se no aspecto financeiro.

Entre fevereiro e março de 2011, foram anunciados dois pacotes totalizando cerca de US$ 130 bilhões para desempregados e como ajuda para quem tentava adquirir seu primeiro imóvel, além da criação de milhares de empregos.

O governo, entretanto, continuava reprimindo manifestações de rua, a maioria no leste do país, em áreas de população xiita.

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Protestos no Bahrain levaram a grave crise regional, com intervenção saudita

O regime saudita, no entanto, não se preocupava apenas com sua própria estabilidade. O minúsculo Bahrein – um arquipélago rico em petróleo na costa da Arábia Saudita – enfrentou uma real ameaça revolucionária.

A partir de 14 de fevereiro de 2011, uma série de protestos abalou o pequeno país, de maioria xiita (cerca de 60%), mas governado, como os outros reinos do Golfo, por uma família sunita.

As manifestações, compostas em sua maioria por xiitas e reprimidas com violência pelo governo, concentravam-se na chamada Rotatória Pérola, na capital, Manama.

A área da rotatória acabou ocupada por milhares de pessoas, que instalaram um acampamento, reproduzindo a estrutura montada por egípcios na praça Tahir.

Em março, porém, o rei do Bahrein, Hamad bin Isa Al Khalifa, autorizou uma intervenção militar liderada pela Arábia Saudita, com apoio dos Emirados Árabes, para encerrar a nascente revolução.

Cerca de 2 mil soldados e policiais não apenas expulsaram os manifestantes, numa ação que deixou dezenas de mortos, mas também destruíram a Rotatória Pérola, pondo a baixo o monumento que dava nome ao local.

Intervenção e caos na Líbia

Para outros países, a Primavera Árabe teve consequências ainda mais significativas – e graves. A Líbia, governada desde 1969 com mão-de-ferro pelo coronel Muammar Khadafi, possui as maiores reservas de petróleo e gás da África.

O país já era caracterizado por diferenças históricas entre o leste, onde estão as principais reservas de petróleo, e sua parte oeste, onde fica a capital, Trípoli.

Em fevereiro de 2011, o impacto das revoluções na Tunísia e no Egito levou a protestos de rua, iniciados em Benghazi, segunda maior cidade do país, localizada no leste. A resposta do regime de Khadafi veio na forma de uma repressão violenta.

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Muammar Khadafi, logo depois de ser capturado e pouco antes de ser morto

Os protestos espalharam-se para outras cidades, e Benghazi tornou-se o centro de um movimento contra o regime de Khadafi.

O governo enviou tropas para a cidade, prometendo destruir a revolução que se formava no leste da Líbia. Pouco antes de uma invasão, porém, o Conselho de Segurança da ONU (Organização das Nações Unidas) aprovou uma zona de exclusão aérea no país, impedindo o regime de Khadafi de usar aviões para bombardear Benghazi.

A resolução do Conselho da ONU foi além: aprovou também o bombardeio de tanques líbios que se dirigissem à cidade rebelde. As medidas seriam implementadas pela Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte, a aliança militar ocidental).

Aviões da França, do Reino Unido e do Canadá, além de navios que incluíam forças americanas, passaram a bombardear posições do regime líbio.

O quadro então tornou-se o de uma guerra civil entre o regime de Khadafi, baseado do lado oeste do país, e os rebeldes, na parte leste.

Apesar da intenção manifestada inicialmente pela resolução do Conselho de Segurança da ONU de proteger a população civil, os bombardeios das potências ocidentais favoreceram os rebeldes e criaram as condições para que passassem de uma posição de defesa para uma ação ofensiva.

Em 23 de agosto de 2011, soldados rebeldes tomaram o palácio presidencial de Muammar Khadafi, controlando em seguida a capital. Khadafi conseguira fugir.

Forças rebeldes concentraram-se então na tomada da cidade natal do agora ex-ditador, Sirte, onde havia uma concentração de combatentes leais ao regime. Khadafi estava na cidade.

Em outubro de 2011, ele e um grupo de soldados tentaram escapar, mas foram logo capturados por rebeldes, ajudados por um ataque aéreo francês contra seus veículos.

Detido, Khadafi foi espancado e em seguida morto a tiros. Imagens do ex-ditador ainda vivo, coberto de sangue e pedindo clemência, e de seu corpo já sem vida foram divulgadas na internet.

Era o fim da versão líbia da Primavera Árabe, mas o começo da guerra pelo poder no país.

A composição de uma nova ordem na Líbia mostrou-se muito mais difícil do que imaginavam as potências ocidentais que apoiaram a queda de Khadafi. Diferentes facções passaram a disputar o domínio do país, enquanto o crescente caos permitiu o avanço de radicais islâmicos.

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Ataque em Benghazi matou quatro pessoas, entre elas o embaixador dos EUA

Em 2012, no dia 11 de setembro – mesma data dos ataques ao World Trade Center, em Nova York, em 2001 – a embaixada dos Estados Unidos em Benghazi foi atacada.

Quatro pessoas, incluindo o embaixador americano, foram mortas. O episódio, que Washington inicialmente descreveu como decorrente de um protesto espontâneo, expôs o grau de instabilidade na Líbia.

O grupo Ansar al-Sharia, formado em 2012 com o objetivo de implementar a lei islâmica na Líbia e baseado em Benghazi, foi acusado de ter organizado o ataque.

Ficou claro que extremistas não apenas operavam com liberdade na nova realidade líbia, como o país se tornara mais um campo de batalha no constante combate contra grupos que o Ocidente considera terroristas.

A disputa pelo poder e pelos campos de petróleo na Líbia pós-Khadafi, além da presença de jihadistas, lançou o país num estado de guerra civil que se seguiu por anos.

Uma tentativa de estabilização levou à constituição de um governo em Trípoli apoiado pelas Nações Unidas, enquanto o leste do país foi inicialmente tomado por islamistas e posteriormente por um grupo secular liderado pelo general Khalifa Haftar.

Na segunda metade de 2020, após anos de guerra civil, a Líbia continuava dividida, com a maior parte do território controlada por Haftar.

Devido à influência de grupos islamistas na composição do governo em Trípoli, nações como Rússia, Egito e França apoiavam o general dissidente. Já países como Turquia e Itália seguiam apoiando o regime baseado na capital.

Em outubro de 2020, os dois lados assinaram um acordo de permanente cessar-fogo em Genebra (Suíça) e deram esperanças para uma futura reunificação do país.

Revolução e guerra na Síria

Em 22 de novembro de 2011, a agência Reuters reproduzia as palavras do presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan: “Olhe para o assassinado líder da Líbia, que virou suas armas para seu povo e apenas 32 dias atrás usou as mesmas palavras que você”.

A mensagem era endereçada ao presidente da Síria, Bashar al-Assad, que dissera que lutaria até a morte para continuar no poder.

Assad parecia estar numa posição semelhante à de Muammar Khadafi, enfrentando uma revolução em seu país, nascida de protestos no início daquele ano.

Os efeitos da Primavera Árabe na Síria foram dos mais danosos para sua população e a estabilidade regional.

O regime de Assad – que herdara a posição de seu pai, Hafez al-Assad, que chegou ao poder com um golpe de Estado em 1970 – era conhecido como um dos mais repressivos da região.

Prisões, torturas e assassinatos eram usados com frequência para calar qualquer possível dissidência política.

Representante da minoria alauíta, um segmento do lado xiita do Islã, Assad era também um dos principais aliados do Irã no Oriente Médio.

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Protestos na Síria foram reprimidos violentamente pelo regime de Assad

Em março de 2011, foram registradas as primeiras manifestações contra o governo, incluindo uma pequena reunião de dezenas de pessoas na capital, Damasco.

Na cidade de Deraa, no sul do país, a repressão armada causou as primeiras mortes – alguns jovens morreram durante protesto contra a prisão e tortura de adolescentes que haviam pichado dizeres contra o governo.

A partir de Deraa, os protestos cresceram em outras cidades importantes, como Homs e Hama, na região central, e Banias, na costa oeste. Para cada uma delas, o regime adotou tática semelhante, com o envio de tanques que sitiavam e bombardeavam a área – serviços básicos como água, eletricidade e telefone eram cortados.

As autoridades diziam sempre que seus alvos eram “terroristas”. Os manifestantes, por sua vez, cresciam em número e determinação. O que começara com pedidos de mais direitos e liberdade rapidamente tornou-se um esforço para derrubar o regime.

Ao longo de 2011, a repressão de Assad ficou cada vez mais violenta, com o uso de armamento pesado contra as concentrações de manifestantes.

Em Aleppo, segunda maior cidade do país, localizada no norte, estudantes da universidade local passaram a se manifestar e exigir o fim do cerco em outras cidades, num exemplo do envolvimento dos jovens na crescente revolta popular.

Como relatou anos depois a União dos Estudantes Livres da Síria (UFSS), criada durante os protestos:

“Estudantes de diferentes universidades por todo o país uniram forças para registrar as violações do regime de Assad contra eles e contra a população de Homs e Banias, que foram alvos nos estágios iniciais da revolução”.

O governo, porém, seguiu com suas ações repressivas, cada vez mais violentas, apesar da crescente pressão internacional para que interrompesse a repressão.

Com o tempo, os confrontos mudaram a natureza do que ocorria na Síria. Em junho, centenas de homens atacaram forças de segurança na cidade de Jisr al-Shughour, matando cerca de 120 soldados e policiais.

Foi o primeiro sinal claro de que a revolução pacífica já incluía confrontos armados.

No segundo semestre de 2011, em vez de manifestantes ou estudantes, Bashar al-Assad já enfrentava rebeldes organizados. A Primavera síria se transformava numa sangrenta guerra civil.

Em janeiro de 2013, as Nações Unidas informaram que um levantamento de seu Alto Comissariado para Direitos Humanos identificou “uma lista de 59.648 indivíduos mortos na Síria entre 15 de março de 2011 e 30 de novembro de 2012”.

Era mais uma prova do tamanho da tragédia humana no país.

Cinco meses antes, em agosto de 2012, o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, afirmava que o possível uso de armas químicas e biológicas na Síria poderia levar a uma intervenção americana.

“Temos sido muito claros, para o regime de Assad, mas também para outros atores no terreno, que uma linha vermelha para nós é começarmos a ver armamentos químicos sendo transportados ou utilizados.”

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Aleppo e outras cidades sírias foram destruídas pela guerra civil

Um ano depois, em agosto de 2013, rebeldes denunciaram a ocorrência de um ataque químico, nos arredores de Damasco, que deixaram mais de mil mortos.

O governo sírio negou o uso dos armamentos, dizendo que a acusação era fabricada, mas o incidente colocou forte pressão por uma intervenção dos Estados Unidos e do Reino Unido na guerra.

Dias depois, o primeiro-ministro britânico, David Cameron, tentou aprovar no Parlamento uma autorização para o bombardeio de posições do regime sírio no país.

Com os britânicos ainda sob os efeitos da trágica guerra no Iraque e diante do caos que tomara conta da Líbia, após os ataques aéreos contra as forças de Khadafi, o Parlamento rejeitou a proposta.

Sem apoio do Reino Unido, Obama desistiu de uma intervenção americana direta. A decisão permitiu que o ditador sírio ganhasse terreno, com a participação de contingentes do grupo xiita libanês Hezbollah, a assistência do Irã e um crescente apoio da Rússia.

Oposição fragmentada

Nos primeiros anos do conflito na Síria, o FSA (Free Syrian Army, ou Exército Sírio Livre), formado em agosto de 2011 por desertores do Exército nacional, foi o principal grupo a combater o regime de Assad.

Ao longo de 2012 e 2013, porém, com o agravamento do conflito, centenas de outros grupos rebeldes foram formados, alguns pequenos e locais, outros com conexões e estrutura em várias partes da Síria.

Em dezembro de 2013, a BBC News publicou uma lista dos principais grupos atuando na guerra civil.

“Acredita-se que existam até 1 mil grupos armados de oposição na Síria, comandando cerca de 100 mil combatentes”, dizia o texto.

Além do FSA, a BBC News listava duas grandes coalizões de organizações jihadistas sunitas espalhadas pelo país. A primeira, Frente Islâmica, era a maior delas, com cerca de 45 mil combatentes.

A aglomeração reunia vários grupos que, apesar de abertos à participação de combatentes estrangeiros, não estavam ligados à Al-Qaeda.

A segunda coalizão, a Frente Síria de Libertação Islâmica, era menor, mas potencialmente mais influente nos rumos da guerra.

Entre suas organizações, estavam a Frente Al-Nusra, um braço da Al-Qaeda na Síria, e o Estado Islâmico no Iraque e no Levante, também conhecido como Isis, Isil ou Daesh.

Apesar da intenção inicial do Isis de se aliar à Al-Nusra em um só movimento, a frente rejeitou a união e manteve-se fiel à Al-Qaeda.

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O grupo extremista Isis avançou durante a guerra na Síria e fez de Raqqa sua “capital”

Nascido da temida Al-Qaeda no Iraque, e inicialmente chamado apenas Estado Islâmico no Iraque, o Isis avançou de forma impressionante na Síria.

Comandado pelo iraquiano Abu Bakr al-Baghdadi, a organização logo se beneficiou do caos sírio.

Em janeiro de 2014, pouco depois que suas forças tomaram Falluja, no Iraque, o Isis derrotou outros grupos rebeldes na disputa pela cidade síria de Raqqa.

Em junho, Baghdadi declarou que o Estado Islâmico no Iraque e no Levante era agora um califado, e ele era o califa.

Em seu auge, entre 2015 e 2016, o chamado Estado Islâmico controlou cerca de um quarto do território sírio, especialmente o nordeste, onde implantou o terror das execuções em massa e sua visão extremista do Islã.

Alvo de bombardeios de aviões americanos e britânicos, a partir de 2014, e russos, desde 2015, em março de 2016, o Isis foi expulso definitivamente da cidade histórica de Palmira, que tomara um ano antes. Grande parte das ruínas históricas foi destruída pela organização.

A guerra ao Isis foi um esforço conjunto, mesmo que não coordenado.

O regime sírio, o libanês Hezbollah, a Jordânia, outros grupos islamistas e as Forças Democráticas Sírias – aliança secular rebelde formada em 2015 – participaram, de uma forma ou de outra, do combate ao chamado Estado Islâmico na Síria.

Ganhou destaque a luta travada pelas Unidades de Proteção das Mulheres (YPJ), facção apenas feminina das Unidades de Proteção do Povo (YPG) – organização militar do Curdistão sírio, no norte do país.

Em outubro de 2017, o Isis perdeu o controle de Raqqa, de onde foi expulso pelas Forças Democráticas Sírias. Dois anos depois, o Isis foi eliminado da cidade de Baghuz, sua última base na Síria. Era o fim do califado de Abu Bakr al-Baghdadi.

Durante a luta contra o chamado Estado Islâmico, a preocupação da comunidade internacional com a derrubada do regime de Assad diminuiu.

Com o passar dos anos, o ditador sírio fortaleceu-se e evitou a queda prevista pelo presidente turco, Recep Erdogan, graças à preciosa ajuda de seu grande aliado, a Rússia.

Os incansáveis bombardeios russos que contribuíram para derrotar o Isis também visavam localidades tomadas por outros grupos rebeldes – e a Rússia foi acusada de destruir vários hospitais e matar um grande número de civis.

Assad aos poucos recuperou o controle de cidades como Homs e Aleppo e afastou o risco de ser derrubado militarmente.

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O líder sírio Bashar al-Assad reprimiu duramente protestos e bombardeou cidades

Segundo uma estimativa do Observatório Sírio de Direitos Humanos, de março de 2011 a março de 2020 a guerra civil na Síria deixou meio milhão de mortos – cerca de 384 mil mortes foram documentadas pela entidade.

O conflito também destruiu completamente as construções e a infraestrutura de muitas de suas cidades.

Em 2020, a Síria seguia dividida, com o leste controlado por rebeldes seculares liderados por curdos e apoiados pelos Estados Unidos, a parte oeste e central nas mãos do governo, alguns pontos ocupados por extremistas religiosos e outros tomados pela Turquia, acusada de apoiar os jihadistas.

A cidade de Idlib, último foco de resistência rebelde cercado pelas forças do governo, continuava sob bombardeio russo. O regime de Bashar al-Assad sobrevivia, mas o futuro do país era incerto.

Primavera dos retrocessos

Enquanto a Síria enfrentava quase uma década de guerra civil, outra guerra devastadora recebia menos atenção da comunidade internacional.

No Iêmen, a história começou de forma parecida à de seus vizinhos. Manifestantes também saíram às ruas no início de 2011 com esperança de obter mais democracia e melhores condições econômicas do regime do autoritário presidente Ali Abdullah Saleh.

Em abril, os protestos já reuniam dezenas de milhares na capital, Sanaa, e em outras cidades. Saleh resistiu durante meses, indicando várias vezes que renunciaria, decisão que foi confirmada em novembro.

No início de 2012, após 33 anos no poder, Saleh deixou o posto. Passou o comando do país a seu vice, Abdrabbuh Mansour Hadi, numa transição que não resistiu às pressões por maiores mudanças.

Após dois anos de tensão e protestos, liderados pelo movimento xiita Houthi, a crise do Iêmen tornou-se guerra civil em 2014.

No ano seguinte, os rebeldes acabaram tomando o poder em Sanaa, enquanto Hadi recebeu o apoio da Arábia Saudita, preocupada com o aumento da influência do Irã na Península Arábica por meio do movimento Houthi.

Forças sauditas, com apoio estratégico de Estados Unidos, Reino Unido e França, realizaram uma campanha de ataques aéreos no país, que ficou fatiado, com os rebeldes na capital e o governo Hadi baseado na cidade portuária de Aden, no sul.

A guerra atingiu um impasse, tendo provocado uma das maiores crises humanas do mundo e deixando ao menos 100 mil mortos.

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Civis foram vítimas de bombardeios sauditas durante o conflito no Iêmen

A tragédia iemenita foi mais um capítulo triste da Primavera Árabe, que acumulou poucos casos de reconhecido sucesso.

O único país que derrubou seu ditador e conseguiu implementar um sistema democrático, num processo lento e repleto de desafios, foi a Tunísia.

No Egito, a queda de Hosni Mubarak foi cercada de muita festa e entusiasmo da população, que apostava num futuro democrático para o país.

As primeiras eleições livres da história egípcia ocorreram em 2012, mas a vitória do partido Liberdade e Justiça, ligado ao movimento islamista Irmandade Muçulmana, levou a um retrocesso.

O líder do partido, Mohamed Morsi, assumiu a Presidência como o primeiro presidente do Egito eleito democraticamente.

Após um ano, manifestantes voltaram às ruas para protestar contra o que consideravam medidas antidemocráticas de Morsi, que estaria perseguindo grupos seculares e iniciando uma islamização do Egito por meio de uma nova Constituição.

Os protestos pediram a saída do presidente, no que foram atendidos pelo Exército.

A intervenção – na prática um golpe militar – levou à prisão de Morsi e centenas de ativistas de seu movimento e ao banimento da Irmandade Muçulmana. A Constituição foi suspensa, e o general Abdel Fattah el-Sisi assumiu o poder.

Em 2014, Sisi foi eleito presidente, em eleições sem a participação de partidos islamistas. Com a segurança interna como prioridade, o governo Sisi passou a ser acusado de abusos contra direitos humanos, especialmente prisões arbitrárias, lembrando características do regime de Hosni Mubarak.

Guerras, milhões de refugiados e esperança

Guerras civis de grandes proporções na Síria, Líbia e no Iêmen. Tentativa frustrada de democracia no Egito e campanha sangrenta do Estado Islâmico. Pequenos e pontuais avanços em monarquias árabes como Marrocos, Jordânia e Arábia Saudita – onde em 2018 as mulheres finalmente ganharam o direito de conduzir veículos. Para uma onda revolucionária, em que milhões de pessoas no Mundo Árabe sonhavam com direitos individuais e melhor qualidade de vida, o saldo parece desolador.

As guerras na Síria e no norte da África geraram um êxodo em proporções enormes, com milhões de civis se lançando em rotas perigosas na esperança de chegar a portos mais seguros. A maioria teve a Europa como destino final, outros porém cruzaram oceanos e, em menor número, foram acolhidos em países longíquos como Estados Unidos e Brasil.

Na pequena Sidi Bouzid, entretanto, Mohamed Bouazizi é lembrado: um monumento em sua homenagem, com uma estátua de seu carro de frutas, foi erguido ainda em 2011.

A vida sob o novo sistema político da Tunísia, com eleições, um presidente e um primeiro-ministro, continuou repleta de desafios, principalmente econômicos.

Em Sidi Bouzid, porém, é impossível ignorar que uma década de protestos, conflitos e transformações começou com um gesto desesperado e de grande sofrimento humano numa rua da cidade.

O monumento a Bouazizi simboliza a esperança de que seu sacrifício não tenha sido em vão.

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Fonte: BBC

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