Por que Trump quer retirar quase 10 mil soldados da Alemanha – e como isso ajuda a Rússia

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Image caption A base de Ramstein é um ponto chave para a política militar dos EUA

O slogan “América primeiro” repetido por Donald Trump durante sua campanha presidencial em 2016 ecoa em alto e bom som nos dias de hoje em Berlim.

Na semana passada, o governo da chanceler da Alemanha, Angela Merkel, confirmou que os Estados Unidos informaram que vão estudar a possibilidade de reduzir o número de tropas americanas em território alemão.

E nesta segunda-feira o próprio Trump confirmou isso, usando duras palavras.

“Nós estamos protegendo a Alemanha e eles são uns delinquentes. Não tem sentido, então eu digo: vamos reduzir o número a 25 mil soldados”, afirmou.

Muitos analistas estimam que essa medida poderia debilitar a aliança militar transatlântica Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

A proposta consiste em retirar até setembro 9,5 mil soldados do território alemão, reduzindo assim o número de tropas americanas de 34,5 mil para 25 mil.

Esse novo patamar seria estabelecido como permanente. Hoje em dia, em função de uma rotatividade de efetivos e necessidades de treinamento, as forças americanas na Alemanha podem somar até 52 mil em determinados momentos, segundo dados do jornal americano The Wall Street Journal.

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Image caption A relação entre Trump e Merkel não tem sido boa

Por que as tropas estão na Alemanha?

A presença militar americana no país começou com a ocupação aliada durante a Segunda Guerra Mundial.

Em seguida ela cresceu devido à Guerra Fria, quando os Estados Unidos chegaram a ter ali centenas de milhares de soldados como parte do esforço de contenção da União Soviética.

Atualmente, a Alemanha sedia os quartéis-generais para Europa da Força Aérea e do Exército, os comandos para a África (conhecidos como Africom) e alguns dos centros de treinamento mais importantes dos Estados Unidos em solo europeu.

Além das consequências estratégicas da retirada, a proposta causou um mal-estar na Europa pois está sendo desenhada de forma unilateral pelos Estados Unidos.

“Isso é completamente inaceitável, especialmente dado que ninguém em Washington pensou em informar isso antecipadamente à Alemanha, que é um aliado da Otan”, disse Peter Beyer, coordenador de Merkel para as relações transatlânticas, ao jornal alemão Rheinische Post.

Mas o que motivou esta medida?

Campanha eleitoral

Os motivos que levaram o governo Trump a tomar esta decisão não estão claros.

Muitos analistas acreditam que há tanto razões estratégicas quanto antipatias pessoais.

Charles Kupchan, professor de relações internacionais da Universidade Georgetown e pesquisador do centro de estudos Council on Foreign Relations, diz que a medida pode ser avaliada sob três aspectos principais.

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Image caption Segundo analistas, o plano de retirada sublinha a tendência isolacionista do governo Trump

“Pode ser que os responsáveis pela retirada de tropas tenham decidido que dada a situação na Europa, as forças americanas podem ser reduzidas. Especialmente com o objetivo de aumentar a presença na Ásia distante”, disse Kupchan à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.

A segunda consideração dele é em relação às eleições presidenciais americanas que acontecerão em novembro.

“Trump está no meio de sua campanha de reeleição e, em geral, ele tem sido bom em cumprir suas promessas de campanha. Uma delas é a de adotar uma política exterior mais isolacionista. Uma redução na Alemanha está em linha com seu desejo geral de fazer as tropas voltarem para casa”, diz.

O especialista diz que esse motivo também está por trás da retirada de tropas americanas da Síria e do Afeganistão.

O terceiro fator citado por Kupchan é “a antipatia visceral de Trump contra a Europa e, em particular, contra a Alemanha”.

“Ele rebaixou desde o início a União Europeia e a enxerga como um concorrente econômico dos Estados Unidos. Ele considera que a Alemanha, mais concretamente, tirou vantagem do generoso envolvimento dos Estados Unidos em assuntos internacionais, ao contribuir com fundos insuficientes para a área de defesa e exportando carros para os Estados Unidos”, diz ele.

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Image caption Estados Unidos têm na Alemanha vários campos de treinamento militar

O correspondente da BBC para assuntos diplomáticos, Jonathan Marcus, considera que a proposta parece refletir “a grande frustração do governo de Trump com o nível de gasto em defesa na Alemanha”.

Assim, ao retirar tropas do território alemão, Trump estaria pressionando o país a incrementar suas próprias forças militares.

Desde sua chegada à Casa Branca, Trump fez uma forte campanha para que os países da Otan cumprissem com o dever de investir 2% do PIB em defesa, uma meta que havia sido proposta por Barack Obama em 2014.

A Alemanha, que é o mais rico dos aliados europeus, gastou em 2019 apenas 1,38%, gerando mal-estar em Washington.

“A Alemanha é um país rico e tende a ter superávit fiscal. Eles investem menos em suas Forças Armadas, em parte, porque se aproveitam dos Estados Unidos e também porque desde a Segunda Guerra Mundial a população sente aversão à geopolítica tradicional.”

“Consequentemente, gastar dinheiro em defesa é algo que os políticos alemães fazem assumindo os riscos. Isso torna mais difícil para a Alemanha alcançar a meta da Otan.”

Trump x Merkel

Outro problema é a relação entre Trump e Merkel.

Para alguns analistas, a retirada de tropas pode ter sido motivada pela negativa da chanceler alemã de apoiar uma cúpula do G7 convocada para o fim de junho em Washington, gerando um mal-estar com Trump.

Uma autoridade americana negou essa versão ao The Wall Street Journal, dizendo que a retirada de tropas já vinha sendo estudada desde setembro de 2019.

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Image caption A escalada de tensões com a China podem levar os EUA a destinar mais recursos ao leste asiático

Kupchan, no entanto, acredita que a negativa de Merkel pode, sim, ter pesado na decisão.

‘Um presente para Putin’

Seja qual for o motivo, a iniciativa de reduzir a presença de tropas americanas na Alemanha tem despertado preocupações, inclusive no Partido Republicano, ao ponto de alguns congressistas terem enviado na terça-feira uma carta para a Casa Branca pedindo que a medida seja descartada.

Por quê?

“Este é um golpe no coração do sistema de alianças dos Estados Unidos e é visto por muitos especialistas como um terrível tiro no pé. Uma das principais vantagens dos Estados Unidos sobre a Rússia e a China é seu sistema de alianças”, diz Jonathan Marcus.

“Trump parece acreditar que as tropas americanas estão na Europa somente para o benefício dos europeus, mas a Otan é importante também para a segurança dos Estados Unidos, e as bases na Alemanha servem como plataformas para projetar o poder americano no Oriente Médio.”

Desde a Guerra Fria a presença de tropas americanas no território europeu tem sido considerada um elemento de dissuasão diante de Moscou.

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Image caption A anexação da Crimeia por parte da Rússia despertou preocupações no Ocidente

Nos últimos anos, esse papel tem ganhado relevância diante do conflito na Ucrânia e da anexação russa da península da Crimeia.

“Na Europa, as ameaças apresentadas pela Rússia não se reduziram e nós acreditamos que estas sinalizações de um compromisso fragilizado dos Estados Unidos com a Otan vão estimular uma agressividade maior e um oportunismo russo”, escreveram os legisladores republicanos a Trump.

Charles Kupchan explica que durante os últimos quatro anos grande parte da resposta de Washington diante das ações da Rússia na Ucrânia foi aumentar o número de tropas e a capacidade de resposta da Otan no leste.

Isso levou a uma presença maior dos americanos na Polônia e nos países do Báltico: Estônia, Letônia e Lituânia.

“Esta presença não está em risco imediatamente com essa retirada mas o sinal de que haverá redução de tropas americanas na Alemanha é algo que inquieta os europeus e que reforça a sensação existente de que os Estados Unidos estão se distanciando da Europa”, diz o analista. Para ele o impacto da decisão será mais político do que estratégico.

E como isso favorece os russos?

“Vladimir Putin adora quando existem tensões entre os Estados Unidos e a Europa, porque um dos seus objetivos geopolíticos é promover a fragilidade interna do Ocidente, em alguns casos interferindo em eleições mas também buscando colocar uma cunha para separar os Estados Unidos da Europa, assim como dentro da própria Europa”, diz Kupchan.

“Esse anúncio é um presente muito bem recebido por Putin.”

Ele considera que se os europeus duvidarem da integridade da aliança atlântica, acabarão inevitavelmente fazendo uma inflexão em direção ao oriente – para Rússia e até China.

“Em alguns aspectos, o governo Trump está empurrando todos nesta direção.”

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Fonte: BBC