Como a pandemia cancelou o raio gourmetizador

“Cancelar” é o verbo da moda.

Então eu vou usar também.

A pandemia da Covid-19 deu um chega-pra-lá no tal do raio gourmetizador. Não matou nem fulminou. Cancelou circunstancialmente. E parcialmente.

Com a ruína econômica trazida pela peste, até os mais bestas dos restaurantes se tocaram de que não conseguiriam vender luxo e ostentação.

O delivery virou a principal praça de comércio, e lá os restaurantes gastronômicos precisam brigar de unha com os por-quilo de bairro e as lanchonetes do hype cheio de vento.

Como resultado, houve um certo achatamento na faixa de preços da comida. O abismo entre os valores cobrados por restaurantões e os pés-sujos diminuiu muito.

Houve também uma adequação dos cardápios. Presa em casa, de moletom e pantufa de Minnie, nem a elite tem paciência para delírios criativos culinários. Assim, o panteão da gastronomia desceu à terra para servir feijão. Farofa. Batata frita.

Um grande exemplo disso é a sagacidade do franco-carioca Claude Troisgros, que aportou em São Paulo em plena quarentena com a marca Do Batista. Quando o entrevistei, há dois anos, Claude já tinha planos de lançar a grife mais popular, que leva o nome de seu ajudante de fogão e de TV.

Duvido que ele imaginasse o desenrolar dessa história.

A ladainha de que crise é oportunidade funcionou para Claude, graças a condições bastante peculiares. Ele acaba de ser alçado ao status de astro televisivo nacional, graças ao programa “Mestre do Sabor”, da Globo, seu primeiro em um canal aberto.

E a marca Do Batista se encaixa perfeitamente às demandas, na crise, de quem (ainda) tem dinheiro para pedir refeições especiais. Picadinho, feijoada, galinhada, tudo por 38 contos. Por favor não compare com o preço do boteco da esquina –lá não tem o selo Troigros, fundamental no posicionamento mercadológico do Batista.

Outros exemplos de recuo estratégico: a rendição do Fasano ao delivery, os “bolos de avó” de Alex Atala no Dalva e Dito, o hambúrguer do Rubaiyat, o sanduíche do Bassi, as macarronadas da Dona Onça, o investimento generalizado nas dark kitchens (cozinhas para entrega, sem serviço no local), as promoções que se tornam permanentes.

Um aspecto negativo do fenômeno é expurgo causado pelo rearranjo de forças no setor. A crise empurrou o chef estrelado para o campinho do restaurante hype, que precisou competir com o filezão tradição, que baixou a bola para jogar na mesma liga da cantina honesta, que entrou em desespero e passou a praticar preços de boteco.

Quem se dá mal, no fim, é o seu Zé do boteco que vende PF a R$ 15, com refri 600 ml grátis.

(Ouça o podcast da Cozinha Bruta no Spotify e no Apple Podcasts. Acompanhe os posts do Instagram, do Facebook  e do Twitter.)

P.S.: É com alegria que, neste sábado, eu cedo o espaço da minha coluna na Folha para Carlos Monteiro, professor de nutrição da USP, na campanha #cientistatrabalhando. Leiam. Prestigiem a ciência.

Fonte: Folha de S.Paulo