É impossível a Seara, da JBS, fazer pizza artesanal

Como era esperado, a JBS não gostou do meu texto “A pizza ‘artesanal’ da Seara e outras mentiras da indústria de alimentos”. Na tarde de sábado (30/8), um representante da empresa me telefonou para dizer que a tal pizza, no entendimento da Seara, era artesanal, sim.

Juliano Nóbrega, diretor de comunicação corporativa da JBS, também assinou uma carta publicada ontem (31/8) no “Painel do Leitor” e, em versão estendida, neste espaço.

Segundo Nóbrega, há uma equipe de 98 pessoas para abrir manualmente a massa e colocar “cada folhinha de manjericão” da cobertura –isso não está na carta, mas me foi dito ao telefone.

Tamanho zelo torna a pizza artesanal? Não.

Acredito nas informações e nas fotos enviadas pela JBS. Por isso mesmo, declino do convite para conhecer a planta em que as pizzas são assadas. Nunca questionei a qualidade da pizza nem o processo manual anunciado pela companha –de toda forma, irrelevantes para a discussão aqui. O problema é aquela palavrinha.

Palavras são meu objeto de trabalho. Sei que cada uma tem uma carga semântica –algo que pode mudar, por exemplo, de acordo com a posição da palavra no texto. A escolha das palavras e seu encadeamento devem ser trabalhados com cuidado, com minúcia, linha por linha. É o que eu busco fazer.

Isso não me torna um artesão das palavras. Além de horrendamente cafona, a expressão é mentirosa, entre outros motivos, porque eu escrevo para a Folha. O alcance e a potência das minhas palavras se multiplicam pela difusão em um dos maiores grupos de comunicação do país. É a dita indústria da mídia, que tem lá seu poder.

O sentido de uma palavra não é estanque. Ele se transforma de acordo com o uso –quando o uso consagra um novo sentido para uma palavra velha, os dicionários precisam ser atualizados.

Por falar nisso, vejamos o que os dicionários dizem sobre a palavra “artesanal”.

Todos a definem como algo relacionado a “artesão ou artesanato”. O “Oxford” acrescenta uma acepção pejorativa: “Diz-se das coisas feitas sem muita sofisticação; rústico”. Não creio que seja esse o objetivo almejado pela JBS com a pizza Seara.

A essas definições, o “Michaelis” soma mais uma. “Feito pelos processos tradicionais, individuais e manuais…” –uia, acho que é isso que os caras querem dizer, mas espere, ainda não acabou– “…em oposição à produção industrial”.

Artesanato e indústria são incompatíveis. Inconciliáveis, especialmente quando a produção industrial atinge os volumes titânicos de uma JBS.

Não importa quantos artesãos a JBS empregue para abrir massa de pizza, ela continuará sendo uma corporação colossal, a maior indústria do setor de alimentos do Brasil. Nada do que sai de suas fábricas poderia ser rotulado como “artesanal”.

O artesanal implica ainda um atributo neutro –negativo para uma operação da escala da JBS– que não consta no verbete do “Oxford”: a falta de um padrão rigoroso de uniformidade. A “arte” da palavra “artesanato” dá uma pista, a natureza do ofício permite certa liberdade criativa.

O tal padrão de uniformidade é tudo o que a JBS persegue e alcança com seus produtos –e, estou certo disso, a regra vale também as pizzas Seara Gourmet. Ao enfileirar artesãos para passar o dia fazendo pizzas idênticas, cria-se uma linha de montagem. É a quintessência da produção industrial, que prescinde da mecanização para existir.

Escala também interessa. Não apenas o volume de produção, mas também distribuição, marketing e toda uma estrutura corporativa pronta para agir para, por exemplo, replicar de imediato uma crítica publicada na imprensa. Se um tipo excêntrico como o Elon Musk contratasse todos os hippies do mundo para colocar miçangas dia e noite em milhões de gargantilhas, nenhuma delas poderia ser considerada artesanato.

No sábado, perguntei a Juliano Nóbrega quantas pizzas da linha “artesanal” a Seara produzia. Sua carta, enviada domingo (30/8), afirma que o “processo de montagem limita a produção em grande escala”, mas não menciona o tamanho da produção. Cobrei dele uma resposta objetiva.

A não-resposta chegou ontem (1/9) pela manhã. A JBS, queixosa de não ter sido ouvida para fornecer “informações que a Seara teria ficado feliz em repassar ao colunista”, se recusou a repassar os dados, tristemente. Era a única informação que faria diferença na discussão e que eu, na condição de jornalista, lamento não ter procurado antes.

“Para preservar sua estratégia de negócios, a Seara se reserva o direito de não revelar dados sobre distribuição e volume de produção”, diz nota encaminhada pela FSB, agência de relações-públicas da JBS.

Se bem compreendi, a JBS bate o pé para defender o caráter artesanal de seu produto, mas alega sigilo industrial para negar acesso a um número fundamental para dirimir o impasse. Ao agir assim, é mais transparente do que se tivesse aberto o livro-caixa.

Neste ponto do texto, talvez você ainda não tenha entendido por que eu encasquetei tanto com uma mísera palavrinha. Vou explicar.

O adjetivo “artesanal” possui o poder mágico de aumentar o valor de venda dos artigos de consumo. São nove letras de ouro. Para empregar a palavra na indústria sem estranhamento, porém, é preciso deformar seu significado com perda mínima de sedução. A cerveja limpou terreno para essa tarefa.

Chamar de “artesanal” a cerveja fabricada em unidades industriais pequenas e médias é um estelionato que já se normalizou. Foi aí que o sentido da palavra começou a esgarçar. Vieram o hambúrguer artesanal, o brigadeiro artesanal e até a pipoca artesanal, carma pesado para a espécie humana. Com a pizza Seara, a JBS deu um passo além.

A tentação de estampar o multiplicador de preço na embalagem é enorme, mas a indústria de alimentos vinha refreando (mal e mal) o impulso. A Ambev não imprime o “artesanal” nos rótulos da Colorado e da Wäls, fábricas menores que adquiriu. O McDonald’s não teve a audácia de chamar de “artesanais” os hambúrgueres da coleção Signature. Já a Bimbo batizou de Artesano (“artesão”, em espanhol) uma linha de pães Pullmann, filigrana semântica que escancara suas intenções.

Quando a JBS mete um “artesanal”, com todas as letras e sem aspas, na caixa de uma pizza congelada de supermercado, a tendência é liberar geral. É como trafegar pelo acostamento de uma estrada congestionada: ninguém desobedece a lei até que alguém ousa e puxa o comboio.

Meu ingênuo intuito aqui é inibir, com a exposição da desfaçatez da JBS, a banalização do uso dessa palavrinha mágica para o mal. É um dever moral tentar impor limites à voracidade dos donos do dinheiro graúdo.

Se eu falhar (você pode apostar que eu falharei), depois de amanhã beberemos Coca-Cola artesanal. E deveremos uma montanha de dinheiro para um banco artesanal –que cobra taxas mais altas porque oferece gerentes em ternos de alfaiataria personalizada e costura manual.

Tempos depois, a palavra arrombada, esgotada, exaurida e lixiviada não terá mais sentido nem utilidade para a indústria. No interregno, alguns bilhões de reais terão passado do nosso bolso para o deles. É o mais eficaz programa de transferência de renda do mundo.

(Ouça o podcast da Cozinha Bruta no Spotify e no Apple PodcastsAcompanhe os posts do Instagram, do Facebook  e do Twitter.)

Fonte: Folha de S.Paulo